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sexta-feira, 30 de março de 2012

O amor chega em uma hora

Só lembro que joguei meu celular em cima do sofá fofo , e rezei para que não caísse no chão . Sei lá se caiu ou não , não deu tempo de olhar para trás , eu estava nervosa e com pressa , ansiosa em direção a porta , estava com a saudade no peito . Ele tá chegando ! Há duas horas atrás nos falávamos do aeroporto , e ele parecia que já havia esquecido de como é que se faz aquela voz de que tanto gosto de ouvir , aquela que falava sussurrando , tudo que eu gostava de escutar .

Ganhamos créditos por tão pouco tempo ao telefone . Talvez seja melhor não esquentar com isso , ele tá cansado . Pensei coçando os olhos pra não chorar . Talvez eu seja boba demais, paranoica demais , cansada de tanta saudade , demais . Tudo tornou-se "demais" desde sua partida . Até meus ataques de ciúmes . Tô começando a achar que ele se perdeu pelo caminho de casa , ou nem sequer cruzou-o . O amor chegaria em uma hora , e eu ainda aqui , nervosa e ansiosa pra tirar essa saudade de mim , livrar-me de vez . Daí ele tocaria a campainha e sem pensar duas vezes pularia para cima e atiraria-o no sofá fofo , rezando para que caíssemos no chão e rolássemos de felicidade , de amor , de querer . Meu amor , prometo que quando chegar não deixarei partir novamente , e mordiscarei-o até aceitar meus pedidos de desculpas por ter o deixado .

Abro a janela de casa e tem um carro que passa lá longe, enquanto eu tento abrir os olhos e encarar esse dia em que você chega. Esse carro não sabe, mas foram mil anos abrindo os olhos e ouvindo carros e ouvindo ruas e não ouvindo a sua voz. E agora a sua voz existe e você chega em uma hora. Eu não consigo comer de tanto medo que eu estou sentindo. Eu quase desmaiei agora de manhã, porque pra piorar está calor. Não lido bem com calor. Não lido bem com a falta de você , com a sua demora , com a saudade . Por mais que eu tente não consigo pensar em outra coisa a não ser que sua demora vai ser demorada por mais umas boas demoras ainda . Não é justo . Atirei-me ao sofá suspirando de raiva e fiquei um bom tempo encarando o teto .

Foi quando abri os olhos e eu estava atirada no chão . A porta em que eu o esperava estava encostada e eu não lembrava de ter a deixado , assim como não lembrava de ter atirado-me no tapete . Joguei meu braço para o lado e na queda amassei uma folha de papel amarela . " Amor , cheguei e tive que dar uma saída , mas volto em uma hora . Você estava dormindo e não quis acordá-la , dormia tão linda que não quis estragar . Já falei que você fica linda dormindo ? É e fica mesmo , espero poder vê-la assim para o resto dos meus dias quando acordar ao seu lado . Você deve estar se perguntando por onde ando agora , não é mesmo ? Não se preocupe comigo , estou com você agora . Feche os olhos e descanse " . Ele só pode estar louco - era só o que eu conseguia pensar - deveria ter me acordado , e eu não deveria ter dormido . Faço tudo errado , sempre . Meu amor de uma hora não chegará mais .

"Você nunca faz nada errado , meu amor e eu estou aqui" ele cruzou a porta como eu esperava e só não atirei-o no sofá porque fiquei totalmente paralisada quando o vi carregar consigo , uma aliança . "É pra mim ?" "Pra quem mais seria ?!" "Esperei você por uma hora" "Eu esperei por você minha vida inteira" . Eu caso com você .

E ele , me abraça e me dá outro desenho, é o vilão da minha vida programada. Ele é o tufão de oxigênio que invade meu nariz mas, porque estou com tanto medo, mais parece falta de ar. Agora é menos de uma hora. Preciso terminar esse texto. Mas eu tenho medo, sobretudo, de terminar esse texto. Sobre o que eu vou escrever se você for melhor do que esperar por você?

sexta-feira, 2 de março de 2012

Sorri porque fui forte , fui forte e sorri

Eu canso de falar de sorriso quando eu sei que não há nenhum por perto . Já falei muito . Mas cansei . Como qualquer outro fala da sua rotina corrida , e transito e carros e buzinas e corre e corre - e nem pensa em caminhar - eu canso como qualquer pessoa cansa e sofre por fazer sempre tudo tão igual , e muitas vezes faço coisas sem sentido sem pensar no que virá depois , ou quem virá . Ninguém sabe . esperando por uma coisa boa , que faça sentindo e não me faça perder tempo pensando no que e como fazer , onde socar todo o mal que anda me perseguindo , e nem sei quem o faz e o por que faz . Só sei que as vezes atinge , como a terra é abafada pela água da chuva em grande pressão . E eu que queria uma vez na vida sentir-me abafado , cuidado , tocado . Penso num jeito de fazer essa água ficar mais amena , de um jeito que possa se lidar , e peço que logo fique habilidoso e consiga acalmá-la e fazê-la parar , não machucar e nem pensar em ferir outra vez . Isso dói . Querer com que as coisas fiquem do meu jeito , de um jeito que eu possa mexer na terra e na água , e não sinta a pressão de querer mexer e mudar de lugar , remexer e mexer , como eu quero , como tem que ser . Deveria ser , só por que eu quero ? ou por que tem que ser ?
Consequentemente sinto a pressão de querer mudar e não achar posição para fazer . Achava isso injusto até dias atrás , até encontrar o que realmente faltava na terra . Eu precisava de força , de água fresca e carinho , amor . Alguém que preocupa-se em largar a água com cuidado . Eu era frágil demais , e aprendi a ser forte quando a água veio em grande pressão .



Além do ponto


Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem
nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter
tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse o táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas,pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos, beberíamos sem medidas, haveria música,sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos.
Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d’água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava,estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava,roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto. Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito.
Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta. Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia,não era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora.
E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca.

(Caio Fernando Abreu)