Páginas

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Irmandade em espírito


Á todo momento eram calafrios e sensações de estar sendo vigiada . De cinco em cinco minutos, parava-me aonde estivesse e fazia o sinal da cruz repetidas vezes para que os calafrios deixassem meu corpo. E com uma breve oração,pedia a quem quer que estivesse ali comigo marcando sua presença em minhas sensações, que pelo menos não ficasse contra mim . Pelo amor de Deus!

Desde nova tenho um problema que atordoa a mim e aos meus pais. Principalmente aos meus pais,já que são eles que sempre saem correndo atrás de mim quando tenho surtos de sonambulismo.Mas em um aspecto essa rotina noturna era diferente ,quem sempre guiava-me até a cama de volta , era minha irmã mais velha,com quem dividia o quarto. Mas era só pra isso que ela me tocava ,e seu único gesto era aconselhar-me a voltar para cama,antes que eu pegasse uma friagem por estar de pés descalços. E eu sentia suas mãos em meus ombros . Hoje posso dizer que aquele simples toque dava-me toda a segurança do mundo. O porquê eu não sei , mas dava . Amanhecia e ela continuava fria , parecendo uma zumbi, com pensamento distante e quase imóvel. Durante o dia fazia de conta de que o nosso quarto, era somente o dela e trancava-se lá até que a janta ficasse pronta.Assim que satisfeita,retirava-se da mesa como se estivesse fazendo um favor a todos,alimentando-se e marcando sua presença na ultima ceia do dia.Todos naquela casa,inclusive eu- mesmo não fazendo ideia do que se passava na cabeça dura de minha irmã - sabíamos que havia algo errado, mesmo que pelas conversas de meus pais eu soubesse que ela é assim desde que nasceu, estranha e quieta , em que até seus olhos eram imóveis e o choro durante o parto nem foi ouvido. Mamãe diz que foi a falta daquele choro que causou este estrago, e papai completa dizendo que os tapinhas não foram suficientes.

Eu sempre soube que minha irmã era diferente de tantas outras que vejo levando suas irmãs caçulas até o parque da rua , desde o dia que mamãe a indiciou de levar-me até lá , com cara feia ,ela se viu sem escolha e foi caminhando lentamente atrás de mim , como se eu que estivesse a levando até lá . Foi assim que aprendi com minhas próprias mãos e meu embalo do corpo a subir naquele balanço tão alto e dar impulsos que quase nem davam velocidade para a diversão. Ela estava lá no banco a minha frente só a me observar,com olhos vidrados como de costume. Enquanto tentava descer do balanço,acabei escorregando e batendo de cabeça em um ferro que estava por perto.E ela viu tudo e não fez nada. Eu desmaiei com a pancada , e quando acordei ela não estava mais lá. Eu não poderia deixar minha irmã por ai , eu não tinha ideia de onde ela poderia ter ido. E mesmo sabendo o caminho de casa , eu estava completamente perdida. Resolvi dar uma volta pelo parque. Ela não poderia estar muito longe.Mesmo com a cabeça latejando,dei voltas e voltas, e os únicos que eu via passar por mim eram homens feios e altos,com longas e serradas barbas, que me encaravam como se eu estivesse perdida. Mal sabem eles. Um daqueles caras,notei que já havia o visto umas quatro vezes passar por mim, e na quinta, eu já estava completamente perdida nas mãos daquele.Com a pancada eu me encontrava lenta, e cada vez mais sem forças para debater-me. E apaguei novamente.

Não tinha noção de quantas horas tinham se passado ou,naquela altura , até mesmo dias .Eu era criança, e bem avisada dos perigos de andar sozinha pelas ruas do bairro, mas naquele dia estranho,com minha irmã estranha ,mais perdida do que eu, os avisos dos meus pais nem sequer existiram.Quando dei por mim, eu estava em casa,rodeada por policiais e minha mãe e meu pai ao meu lado , não sabia qual dos dois chorava mais. Sem saber do motivo concreto de todas aquelas lágrimas, fiquei um tempo observando tudo que fazia movimento.  Estávamos no jardim de casa, e a cada cena as coisas ficavam mais complexas em minha mente ainda atordoada por aquele ferro que apareceu na minha frente que nem sequer me deu tempo de agir , e pelo desaparecimento da minha irmã que ainda não me conformo. Mas depois de tudo isso ainda vem a parte mais tensa e agoniante,o homem com a barba longa . Afoguei-me naquela imensa barba e fiquei inconsciente. Péssima hora para apagar ! Mas agora relembrando os fatos...o que aconteceu no principio eu bem lembro,o meio, bom , esse eu perdi , agora só resta saber se esse vai ser o fim.

Do jardim fui carregada a ambulância , que á frente , encontrava-se um carro sinistro , escuro e com um silêncio intenso e perturbador. Fecharam-se as portas do carro que causava medo, em que eu estava , junto a mim , mamãe , aflita . Nem chorar ela conseguia . Fechei os olhos pedindo pra que quando os abrisse , tudo aquilo fosse só mais um daqueles pesadelos que eu tinha todas as noites e que levantava-me inconsciente, só que dessa vez, quero estar bem atenta ao que estivesse acontecendo,pelo menos dessa vez, Senhor! Já estava no hospital , dessa vez sozinha . E sentia minha audição abandonar-me lentamente. Eu estava só , num quarto branco , sem nem ao menos falar e escutar minha voz ou qualquer outro barulho que possa ter aparecido. Comecei a rezar internamente , como papai havia me ensinado .

Amanhecia e anoitecia , durante anos foi assim dentro daquele hospital ,onde ninguém tinha ido me ver e nem me buscar.Eu crescia lá dentro, sem saber notícia de nada . Meus pais me esqueceram e minha irmã ainda continuara desaparecida? E com esses tantos anos esquecida naquele lugar, eu também já havia esquecido da utilidade dos meus ouvidos . Onde a unica coisa em que eu fazia era sair vagando pelos corredores . Haviam muitas crianças , e nenhuma parecia tão assustada quanto eu , mesmo já acostumada com a minha atual realidade. E foi aos poucos , e sozinha , que acabei descobrindo em que o hospital não se tratava somente de um hospital , e sim de um orfanato . Só fui saber disso quando vi duas mulheres uniformizadas conversando , e claro , com ajuda da leitura labial . Falavam da tragédia que acontecera há quatro anos atrás, que por coincidência tratava-se daquele meio da história que eu perdi . Comentavam como se ainda ninguém naquela cidade pequena tivesse superado . "A mãe havia enlouquecido e estava sendo medicada sob uma quantidade fortíssima de remédios para depressão , e o pai havia abandonado a louca ,  a filha caçula no orfanato,surda, com o tiro na cabeça que levou a mais velha , assassinada  pelo sequestrador da irmã . Família de loucos ! " Não tinha mais dúvida,aquela era a minha família , de loucos . Voltei ao quarto de onde nunca deveria ter saído e de onde minha curiosidade de lá também não deveria.

A todo momento eram calafrios e sensações de estar sendo vigiada . Eu acordei em um cemitério . Lembro de ter passado por ele no caminho até o parque ,só não lembrava de ter ficado tão aterrorizada quando o vi ,a ponto de ter vindo até aqui e agora e despertado o sonambulismo que há anos me deixou, sem saber o porquê e como de ter vindo . E as sensações de estar sendo vigiada ficavam cada vez mais forte . Eu não sei se aqueles vultos eram frutos da minha imaginação , se eu estava ficando louca como minha mãe , ou se realmente estava vendo espíritos de tantas covas que tem por aqui . É estranho -assim como minha irmã- sentir as mãos dela sobre meus ombros , sem pronunciar sequer uma palavra , mesmo sabendo que ela não estava ali me guiando em carne e osso , eu a tinha em alma e espírito , me levando em direção a saída . E como tantas vezes , ela aconselhou-me em poucas palavras : vá pra cama , senão vai pegar um resfriado .

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

[...] Eis a questão


Uma lata de refrigerante em uma das mãos e na outra uma tarde de verão , tocando a areia . Zilhões de flocos dela e pessoas que desconheço que um dia as tocaram do mesmo jeito que agora as toco . É engraçado pensar que assim como eu , há gente que se importa e tem aquela curiosidade de saber da história de um grão de areia . As vezes até me acho estranha por isso . E eu sou estranha . E muitos deveriam ser também , talvez seja isso que falte nas pessoas . Uma estranheza boa , saudável . Que agora que já classifico como sinônimo de curiosidade , esbanjo essa minha qualidade por aí , a cada canto que vou  sempre há um detalhe que ninguém enxerga ou passa reto , despercebido.  Com a falta de querer mais do que aquilo oferece .

Curiosidade de dever , de saber um pouco sobre tudo que me rodeia , e questionar-me um pouco , de vez em quando , pra falar a verdade , sempre . E assim que peguei meu refrigerante da bolsa , questionei-me sobre quantas mãos passaram sobre ele antes de eu o tocar . Antes de eu abrir esse sorriso prazeroso de satisfação por estar simplesmente me sentindo completa nesse momento , olhando o mar e já questionando-me sobre as ondas - mas aí é outra história - vamos lá refrigerante , por que me trouxeste tanta alegria ? Será que as pessoas que o fizeram vir até aqui estavam felizes tanto quanto eu ? Será que colocaram sorrisos e serenidade dentro dele também ? Essas pessoas gostam do que fazem ? - São coisas que não terei uma resposta , mas contento-me em saber que foi feito , e muito bem feito . Volto a olhar as ondas e dessa vez não o interrogo , e deixo o mar falar por si . Mas eu não seria eu se deixasse isso passar : A natureza é perfeita ! nada mais a declarar .

Por ser tão questionada aprendi a questionar também , e vi que não há nada de errado nisso . E que tudo tem um porquê todos sabemos , mas quase ninguém se interessa em aprofundar este porquê tão esquecido entre a humanidade . Pra que ficar retrucando quando aquilo que te dizem é o certo ,ou pelo menos dizem que é? Mas por que é o certo ? Ah , isso ninguém quer saber . Só aceitam . Sociedade alienada . Ninguém nunca ousou me perguntar porque sou tão rígida em relação a mínimos detalhes, só costumam me chamar de louca , louca e louca . E eu não devo e não posso me acostumar com essas atitudes , são inaceitáveis .

Costumo ficar aqui sentada na areia, pensando sobre ela ,ao mesmo tempo que observo o mar e analiso as pessoas que passam . Algumas tristes querendo disfarçar , já outras que não conseguem e também aquelas que nem querem . Gostam de mostrar para o mundo que estão sofrendo . Gente que aparentemente esbanja felicidade . Gente séria , ou só é a cara mesmo . E gente que vem aqui fazer o mesmo que eu . Falando nela ! - Eai tudo bem contigo ? demorou pra chegar . Eu já ia questionar sobre a nossa amizade . Sentá aí , tem lugar pra mais uma . Quer falar sobre o que ?